A Revolta das Palavras - post por José António Barreiros em
2011.10.11
Isto que eu vou dizer vai parecer ridículo a muita gente.
Mas houve um tempo em que as pessoas se lembravam ainda, da
época da infância, da primeira caneta de tinta permanente, da primeira
bicicleta, da idade adulta, das vezes em que se comia fora, do primeiro
frigorífico e do primeiro televisor, do primeiro rádio, de quando tinham ido ao
estrangeiro.
Houve um tempo em que, nos lares, se aproveitava para a
refeição seguinte o sobejante da refeição anterior, em que, com ovos mexidos e
a carne ou peixe restante se fazia "roupa velha". Tempos em que as
camisas iam a mudar o colarinho e os punhos do avesso, assim como os casacos, e
se tingia a roupa usada, tempos em que se punham meias solas com protectores.
Tempos em que ao mudar-se de sala se apagava a luz, tempos em que se guardava o
"fatinho de ver a Deus e à sua Joana".
E não era só no Portugal da mesquinhez salazarista. Na
Inglaterra dos Lordes, na França dos Luíses, a regra era esta. Em 1945
passava-se fome na Europa, a guerra matara milhões e arrasara tudo quanto a
selvajaria humana pode arrasar.
Houve tempos em que se produzia o que se comia e se
exportava. Em que o País tinha uma frota de marinha mercante, fábricas, vinhas,
searas.
Veio depois o admirável mundo novo do crédito. Os novos pais
tinham como filhos, uns pivetes tiranos, exigindo malcriadamente o último
modelo de mil e um gadgets e seus consumíveis, porque os filhos dos outros
também tinham. Pais que se enforcavam por carrões de brutal cilindrada para os
encravaram no lodo do trânsito e mostrarem que tinham aquela extensão
motorizada da sua potência genital. Passou a ser tempo de gente em que era
questão de pedigree viver no condomínio fechado e sobretudo dizê-lo, em que
luxuosas revistas instigavam em couché os feios a serem bonitos, à conta de
spas e de marcas, assim se visse a etiqueta, em que a beautiful people era o
símbolo de status como a língua nos cães para a sua raça.
Foram anos em que o campo tornou-se num imenso resort de
turismo de habitação, as cidades uma festa permanente, entre o coktail party e
a rave. Houve quem pensasse até que um dia os serviços seriam o único emprego
futuro ou com futuro.
O país que produzia o que comíamos ficou para os labregos
dos pais e primos parolos, de quem os citadinos se envergonhavam, salvo quando
regressavam à cidade dos fins de semana com a mala do carro atulhada do que não
lhes custara a cavar e às vezes nem obrigado.
O país que produzia o que se podia transaccionar esse ficou
com o operariado da ferrugem, empacotados como gado em dormitórios e que os
víamos chegar, mortos de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras
bombas relógio de raiva contida, descarregada nos cônjuges, nos filhos, na
idiotização que a TV tornou negócio.
Sob o oásis dos edifícios em vidro, miragem de cristal,
vivia o mundo subterrâneo de quantos aguentaram isto enquanto puderam, a
sub-gente. Os intelectuais burgueses teorizavam, ganzados de alucinação, que o
conceito de classes sociais tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas
supunha que o real era apenas uma noção, a teoria da informação, substituía os
cavalos-força da maquinaria pelos megabytes de RAM da computação universal. Um
dia os computadores tudo fariam, o ser humano tornava-se um acidente no barro
de um oleiro velho e tresloucado, que caído do Céu, morrera pregado a dois
paus, e que julgava chamar-se Deus, confundindo-se com o seu filho e mais uma
trinitária pomba.
Às tantas os da cidade começaram a notar que não havia portugueses
a servir à mesa, porque estávamos a importar brasileiros, que não havia
portugueses nas obras, porque estávamos a importar negros e eslavos.
A chegada das lojas dos trezentos já era alarme de que se
estava a viver de pexibeque, mas a folia continuava. A essas sucedeu a vaga das
lojas chinesas, porque já só havia para comprar «balato». Mas o festim
prosseguia e à sexta-feira as filas de trânsito em Lisboa eram o caos e até ao
dia quinze os táxis não tinham mãos a medir.
Fora disto os ricos, os muito ricos, viram chegar os
novos-ricos. O ganhão alentejano viu sumir o velho latifundário absentista pelo
novo turista absentista com o mesmo monte mais a piscina e seus amigos,
intelectuais claro, e sempre pela reforma agrária e vai um uísque de malte,
sempre ao lado do povo e já leu o New Yorker?
A agiotagem financeira essa ululava. Viviam do tempo,
exploravam o tempo, do tempo que só ao tal Deus pertencia mas, esse, Nietzsche
encontrara-o morto em Auschwitz. Veio o crédito ao consumo, a conta-ordenado,
veio tudo quanto pudesse ser o ter sem pagar. Porque nenhum banco quer que lhe
devolvam o capital mutuado quer é esticar ao máximo o lucro que esse capital
rende.
Aguilhoando pela publicidade enganosa os bois que somos nós
todos, os bancos instigavam à compra, ao leasing, ao renting ao seja como for
desde que tenha e já, ao cartão, ao descoberto autorizado.
Tudo quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas,
sendo futebolista, ou o que vocês sabem, sendo o que vocês adivinham, para aconselhar-nos
a ir àquele balcão bancário buscar dinheiro, vendermo-nos ao dinheiro,
enforcarmo-nos na figueira infernal do dinheiro. Satanás ria. O Inferno
começava na terra.
Claro que os da política do poder, que vivem no pau de sebo
perpétuo do fazer arrear, puxando-os pelos fundilhos, quantos treparam para o
poder, querem a canalha contente. E o circo do consumo, a palhaçada do crédito
servia-os. Com isso comprávamos os plasmas mamutes onde eles vendiam à noite
propaganda governamental, e nos intervalos, imbelicidades e telefofocadas que
entre a oligofrenia e a debilidade mental a diferença é nula. E contentes,
cretinamente contentinhos, os portugueses tinham como tema de conversa a
telenovela da noite, o jogo de futebol do dia e da noite e os comentários
políticos dos "analistas" que poupavam os nossos miolos de pensarem,
pensando por nós.
Estamos nisto.